segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Recado nas páginas do MSN




As páginas do msn estão repletas de frases escritas pelos internautas distantes, que tentam de alguma maneira se diferenciar, se rotular, mostrar algo de si, algo que o faça outro, perante tantos bonequinhos verdes.

Hoje entre “Da-lhe porco” e “Marta, eu sei porque o Kassab não casou” estava Martin Luther King. Não esperava encontra-lo ali, em uma página de relacionamentos, mas lá estava, talvez para me instigar, me resgatar, ou me tentar. “O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem-caráter, nem dos sem-ética.O que mais preocupa é o silêncio dos bons”. Martin Luther King

No burburinho constante da redação pensei em porque nos declaramos tão impotentes. Seria essa impotência uma condição, ou uma escolha?

Acho que realmente nos convencemos que não temos poder sobre nada, não temos mais direito nem ao nosso corpo, aceitamos agressões, veladas ou abertas, físicas ou psicológicas, resignados. Abrimos mão dos nossos direitos.

O coro dirá “são pensamentos de jovem, que acaba de sair da universidade, com o tempo terá que deixá-los e se encaixar na vida real”. Será a vida real resignação? E aqueles que optaram pelo NÃO? NÃO se resignar, NÃO aceitar, NÃO esquecer, NÃO ser mais um impotente?

Logo o coro novamente dirá “Utópico”, e eu gritarei fora do tom, se sua opção é ser espectador não tente matar a gana do jovem, de idade e de espírito, de quem ainda crê, e acha que se o mundo não nasceu assim ele pode ser mudado. A história não acabou, não seria a primeira nem a ultima vez que uma quebra de paradigmas aconteceria.

Rotulem como quiserem, prefiro ser a voz destoante. Sugiro que tente também, antes que seu silêncio custe um preço alto de mais para ser pago.
“A covardia coloca a questão: 'É seguro?
'O comodismo coloca a questão: 'É popular?
'A etiqueta coloca a questão: 'é elegante?
'Mas a consciência coloca a questão, 'É correto?
'E chega uma altura em que temos de tomar uma posição que não é segura, não é elegante, não é popular, mas o temos de fazer porque a nossa consciência nos diz que é essa a atitude correta”. Martin Luther King

terça-feira, 15 de julho de 2008

O poder da pólvora




No último dia da viagem à praia, Thomas deu aos amigos seus passes de ônibus, disse que já não precisaria deles, como se soubesse que naquele mesmo dia seria brutalmente assassinado.
Um policial militar, que não estava em serviço, vestia bermuda e chinelo, acompanhado de um amigo e duas mulheres e que portava arma da corporação, a mesma com que disparou os tiros que atingiram a nuca de Thomas, acabou com a vida do jovem de 20 anos.
Os amigos guardam até hoje, 4 anos depois, as lembranças da tragédia e os passes de ônibus de Thomas.

Essa história nunca saiu da minha cabeça, pois estou fortemente ligada a ela. Thomas era meu amigo de faculdade, e o garoto que estava no banco do passageiro, ao lado de Thomas nos seus últimos segundos é meu namorado. No entanto, nas últimas semanas, lembro com mais freqüência deste fato e não é pelo caráter afetivo a que me remete.

No dia 6 de julho, João Roberto Amorim Soares, um garoto de 3 anos morreu no Rio de Janeiro, vítima de balas disparadas por policiais militares, 30 no total, das quais 16 atingiram o carro que sua mãe dirigia. O irmão, de 9 meses se salvou por pouco.

Os policiais que perseguiam o carro de bandidos, alegaram que em meio à troca de tiros, atingiram acidentalmente o carro com as crianças. No entanto, os laudos da polícia já detectaram que não houve troca de tiros, e imagens de câmeras de segurança de um prédio em frente ao local mostraram que a mulher estacionou seu carro ao notar a perseguição, ainda assim os policiais desceram de seus carros e alvejaram o veículo.

Ao ver as imagens deste filme em preto e branco, considero, em primeiro lugar quão despreparada é a nossa polícia. Parte desta culpa é do estado, que trata com descaso uma das funções mais importantes do país, a da polícia. A entidade está hoje sucateada, os salários da grande maioria é defasado e insuficiente, em geral, não há o devido treinamento, as condições de trabalho são insalubres, o que os leva, inúmeras vezes ao envolvimento com todo o tipo de corrupção. Fora das telonas, as tropas do Brasil não são de elite. Em conseqüência, a condição mental destes homens que andam com armas empunhadas é preocupante. Em meio a uma realidade onde os maniqueísmos de mocinho e bandido já não cabem mais, estes homens são convencidos de que detêm o poder de deliberar sobre a vida e a morte de alguém.

Tento pensar com frieza no caso do Rio de Janeiro. Mesmo que aquele carro, parado, com uma família dentro, fosse de fato o que estava sendo perseguido pela polícia, que motivos teriam os policiais para metralharem o veículo, buscando exterminar seus passageiros, sendo que nenhum tiro saiu de seu interior e que nenhuma agressão foi feita aos policiais?

Temos a tendência de desumanizar os “fora da lei”, mas devemos nos lembrar que vivemos em um país onde a pena de morte não é aceita. Que direito teriam aqueles policiais de tirar a vida de pessoas, fossem elas aquele garoto, ou os homens perseguidos?

Não defendo aqui que a polícia deva ser frouxa com aqueles que infringem as leis. Defendo sim que as leis de fato valham, por todos e para todos.

Os filtros das notícias nos impedem de saber quantas outras pessoas foram mortas, direta ou indiretamente por aqueles que deveriam nos proteger. Alguns casos vêm à tona, outros milhares ficam enterrados, nas vielas escuras de favelas, periferias, pequenas cidades, e outras terras de ninguém.

O poder da pólvora está subindo à cabeça destes homens, não apenas dos réus do caso do Rio de Janeiro ou do condenado pelo caso de Thomas, mas de outros milhares.
Os pais pedem que o caso não seja esquecido, alguns outros gostariam apenas que seu caso fosse ouvido e quem sabe um dia resolvido. Até quando permitiremos que este tipo de filme seja sucesso de bilheteria no Brasil? Um dia o protagonista pode ser você!

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A máquina do desemprego




Já em 1847, Marx tentou nos alertar “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e como isso, todas as relações sociais...Essa revolução continua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, ... as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar”.
Ao longo das bruscas mudanças sofridas pelo mercado de trabalho brasileiro, o trabalhador, cal misturado à água, é obrigado a constantes mutações, pois se permanecer inerte endurece, pesa e se transforma em pedra no caminho.
Aprendemos cedo a competir, com nossas limitações, com o outro e contra todos. No entanto, ultimamente a competição tem se tornado injusta, temos que competir com máquinas. Não são máquinas saídas das telas de “O exterminador do futuro” ou do mais recente “Transformers”, são máquinas que ocupam em larga escala os postos de trabalho que antes demandavam de mãos, braços e cérebros. Os únicos cérebros que o mercado ainda demanda são os daqueles que criam as máquinas, controlam seus movimentos ou coordenam alguma coisa, ou coisa alguma.
Ao trabalhador cabe a impossível missão de se atualizar e se especializar em temas perecíveis, barganhar por um espaço restante no mercado de trabalho e aumentar sua produtividade.
Em último caso, resta o mais crescente mercado, o informal.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

LER – Lesão por emburrecimento repetitivo


Nunca fui daquelas jornalistas inconvenientes que convencida de sua falsa superioridade intelectual corrige as falhas gramáticas alheias. Tenho, pelo contrário, a humildade de mensurar e admitir minha ignorância, como a de tantos, em relação ao nosso tão complexo idioma.

Assim como na inteligência, medida pelo QI, os mais evoluídos utilizam apenas 10% de sua capacidade intelectual, na gramática, aqueles que mais sabem devem ter conhecimento de algo próximo a 10% do universo gramatical.

Explica, mas não justifica.

Me sinto no dever de denunciar os assassinatos que ocorrem diariamente.
Junto a tantos outros crimes, no caderno policial dos periódicos devemos incluir o homicídio culposo (sem intenção de matar) da língua portuguesa.

Ultimamente tem chamado minha atenção o uso recorrente de duas formas cruéis de homicidio ao nosso idioma e ao meu aparelho auditivo que sente dores quando se depara com algo assim.
Ouço com freqüência, da boca de funcionários “de alto escalão” os termos “para mim fazer” e “estarei enviando, estarei verificando, estaremos retornando”...ando...ando...ando.

No primeiro caso sempre que escuto o termo, penso em sugerir ao interlocutor o uso de tangas e penas de índio, talvez todos os que falam assim devam ser encaminhados a tribos onde mim realiza alguma ação.

E a praga do telemarketing se espalhou, conseguiram estragar o gerúndio. São comuns nos escritórios diálogos como:

triiiim, triiimmmmm....

- funcionário de alto escalão boa tarde
sim, eu estarei avaliando esse pedido, logo após estarei comunicando os funcionários e estarei encaminhando um e-mail com a solicitação. Assim que obtiver uma resposta estarei te retornando

E alguns, ainda mais violentos dizem:

- Se você puder estar me enviando este e-mail para mim fazer uma leitura mais detalhada eu estarei respondendo em breve.

Já que os termos se tornaram tão comuns, batizemos de “indioma” e “duplo gerúndio carpado”

Concluo que devemos seriamente rever a formação de nossos “funcionários de alto escalão” e fazer uma busca de antecedentes criminais antes da contratação, caso contrário, os funcionários de baixo escalão, como nós, reles mortais, sofrerão de uma crescente epidemia de LER, lesão por emburrecimento repetitivo.




PS: Se você reconheceu algum personagem desta história, qualquer semelhança não é mera coincidência. Se você se reconheceu nesta história, indico que procure um professor particular de gramática.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Geração Havaianas


Foi-se o tempo em que os chinelos havaianas, ainda na versão azul e branco eram sinônimo de falta de dinheiro, bom gosto ou status. Após a reestruturação de imagem da marca, os chinelos da Alpargatas, chegaram aos pés da classe média, e até quem diria, da atriz Jannifer Aniston. Mas não é só de pés internacionais que vivem as havaianas. Venho observando em algumas festas de que participei, como casamentos e bailes de formaturas que dentro da bolsa da grande maioria das mulheres junto com maquiagem, pente, entre outros itens femininos, estão as havaianas, e quando a música começa os sapatos elegantes são substituídos instantaneamente pelos chinelos.
Não pense que se envergonham ou se constrangem com a estranha combinação chinelo e vestido de festa, a moda conforto pegou, e aquelas que se equilibram durante toda a noite sobre o salto, agora são olhadas como pessoas estranhas, masoquistas que não se renderam à moda do menos é mais.
Seria essa uma reação jovem aos excessos da pós-modernidade? Estariam eles cansados de tanta parafernalha, tantos objetos que em sua maioria só geram desconforto, individualismo, solidão e angústia?
Chegamos ao século XX com todas as certezas abaladas, durante anos quisemos mais. Mais tecnologia, mais rapidez, mais eficiência, mais variedade, mais dinheiro, mais sapatos, mais roupas, mais acessórios. Será que nos estufamos de tudo isso e agora queremos menos?
O novo comercial da tão usada havaianas prega isso.....diz como em poesia que queremos menos...
Eu quero menos
Menos preocupação.
Menos formalidade.
Menos nuvens no céu.
Menos roupa.
Menos encanação.
Menos se levar a sério demais.
Menos escritório.
Menos cara feia.
Menos despertador do lado da cama.
Menos falta de tempo.
Menos resolver tudo por e-mail.
Menos chapinha.
Menos distância.
Menos complicação.
Ah, eu quero menos pra mim...e quer saber? Eu desejo o mesmo pra você

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Perdão mas andei vazia


Perdão mas andei vazia.


Há dias perambulo dentro de mim, batendo em cada porta, levantando os tapetes, arrastando os móveis em busca de algo, um sentimento, uma idéia, uma palavra, uma atitude, mas nada encontrei, absolutamente nada, a casa estava vazia, talvez fechada para reforma, quem sabe simplesmente abandonada.


Mas hoje encontrei algo, tento ver de longe o que é, mas no escuro da luz cortada fica difícil. Já senti seu cheiro, sua presença, mas não identifiquei. O importante é que encontrei.


Talvez seja um pedaço de dor, talvez um pedaço de amor, quem sabe até alguma raiva, esperança, ou uma palavra que resolveu se esconder sabendo que algum dia seria necessária, quando todas as outras tivessem se esvaído, ou quando a dona dessa casa já tivesse desistido de usá-las e num ímpeto houvesse as jogado ralo abaixo.


Tomei o pedaço de coisa alguma, reguei e agora ela parece se tornar um pedaço de alguma coisa. Mais uma vez acendi as luzes, abri as portas e as janelas, assumi quem não sou tentando encontrar quem sou, com o eterno medo de me tornar inconscientemente quem não quero ser.


Limpei a casa, pintei as paredes.


Voltei ok? O importante é que voltei.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Desabafo


Acorda que o despertador tocou, levanta e deixa aí teus sonhos, esquece deles assim como esquece os lençóis desarrumados, pensa neles apenas como pensa no teu colchão ao longo do dia, com desejo de estar lá, e melancolia de saber não poder.


Coloca tua roupa, teu uniforme, tua fantasia, esta que te iguala a tantos outros e te diferencia de ti, que te faz, no correr do relógio, esquecer quem era no começo.


Calça teus sapatos, esses que te levarão a lugar nenhum, ou a algum lugar tão distante de onde queria estar.


Engole tua comida e parte porque as horas já não são tuas, elas já não te pertencem. Corre, não porque precisam de ti, mas porque és completamente substituível.


Faz, produz, passa mais um dia na inércia, finge um sorriso, um interesse.


Enche com feijão tua boca que já quer gritar, cala-te, e fecha teus olhos para o que já não agüentar ver.


Não olha para os ponteiros pois eles andarão mais devagar apenas para contrariar-te.


Ao fim do dia, volta, pega os cacos dos teus sonhos e os reconstrói, junto ao teu travesseiro, teu lençol e teu colchão, assim como reconstrói teu corpo em pedaços e tua alma em cangalhos.


Comece mais uma vez, e espere com fé o dia em que acordará para viver teu sonho, que se vestirá de verdade, que calçará teus pés de asas que te levarão ao lugar onde deseja estar.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Causos do 669-A


Existe um conhecido axioma da física chamado, Princípio da Impenetrabilidade, que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. Nunca fui boa em física, por sinal, neste momento busco com afinco em minha memória o milagre que me fez passar nos exames dessa disciplina durante o colégio.

Enfim, hoje cheguei à conclusão que quem pensou nesse principio não previa a situação do transporte público em São Paulo.
A caipira que deixou a cidade de 30 mil habitantes, sem semáforo, shopping ou qualquer coisa que para os "urbanóides" parecem indispensáveis à vida, decidiu que queria ser jornalista, pegou suas trouxas, deu adeus ao seu mundinho e foi para São Paulo. Este tipo de decisão deveria ser acompanhada de uma bula, contendo indicações, contra-indicações, reações adversas, posologia, etc.

Causos do 669-A

669-A, Terminal Santo Amaro, ou como prefiro chamar, “O inferno na terra” (acreditem, não é exagero), 18:30, numa sexta-feira qualquer de 2004. Com sorte, você pode encontrar num desses momentos decisivos da vida uma pessoa que te faça rir do sofrimento, e alivie tudo aquilo que parece te matar aos poucos, uma Mari.

5 ônibus passaram no período de 60 minutos, olhávamos atônitas, tentamos por algumas vezes uma modificação corporal que nos permitisse seguir viagem em um daqueles carros.
Teletransporte não nos saia da mente.

Com o tempo se aprende que não adianta esperar, o trânsito não vai passar, o ônibus não vai esvaziar, a chuva não vai melhorar, e a rua não vai desalagar tão cedo.
Fomos no seguinte.

Nos primeiros passos percebi que meu pé já não tocava o chão, eu era levada pela massa de pessoas que se espremiam e empurravam uns aos outros tentando se acomodar. Nesse momento você já não sabe se aquele ombro é mesmo seu. Remover o pé do chão é um erro irremediável, pois o lugar desocupado pelo seu pé esquerdo será instantaneamente preenchido pelo de outra pessoa e você não encontrará outro espaço para colocar o seu, logo terá que se virar em um pé só. É importante lembrar que ônibus não foi feito para quem tem menos de 1,70m, como é meu caso, pois os braços curtos, já impossibilitados de se movimentar não alcançam as barras de apoio no teto do ônibus. Os braços compridos da Mari me salvavam nessa hora, eram minhas barras de apoio.

Como por milagre encontramos um espaço de uns 30 centímetros no último degrau da porta que não abria, lá nos esprememos. Não sei se ríamos de desespero, tristeza ou por que no fundo a situação era engraçada.

De repente o ônibus pára, ouvimos um bate boca na frente, convencida pela Mari levantei para ver o que ocorria. Não era nada demais, quatro rapazes tentaram invadir o ônibus sem pagar, o motorista corajoso (de corajoso o céu está cheio) deu partida no ônibus tentando impedir a entrada. Em resposta, os rapazes sacaram suas armas. Por sorte, o único que assassinaram foi o português, “Olha aqui motorista, sê ta achano que nóis é prayboy, se ta loco, ta achando qui ta mecheno com prayboy, nóis vamu mete tiro na sua cara”. Convencido o motorista seguiu viagem com os rapazes a bordo.

Pensamos em descer naquele ponto e seguir a pé, mas estávamos um tanto quanto longe de casa, e mesmo que optássemos por esta decisão não conseguíramos chegar à porta de saída em tempo. A Mari em um surto de desespero queria pular pela janela ou em um golpe certeiro derrubar a porta com um chute. Logo viu que seria no mínimo inviável.
Decidimos ficar, afinal após 2 horas no trânsito, tudo o que você quer é chegar em casa, o resto é fácil de superar.

No dia seguinte lá estaríamos novamente a espera do próximo causo do 669-A
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(Continua qualquer dia......afinal, 3 anos de 669-A renderam muitas histórias)

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Quem ganha e quem perde no jogo do poder


Devo admitir que nunca fui das mais entusiasmadas pelos debates políticos, digo isso sem medo de parecer burra, alienada ou desinteressada. Tenho minha opinião, minhas reivindicações, meu candidato favorito; pesquiso, procuro conhecer, penso e repenso meu voto, mas este é um tema que prefiro refletir individualmente. Minha paixão é o povo, o que lhe afeta, o que lhe interessa, o que lhe falta (coisas que ao meu ver, não deixam de ser discussões políticas)

No entanto, no dia de hoje me encontrei instigada a falar (como leiga advirto) sobre algo da política brasileira. Na realidade sobre a população politicamente ativa do nosso país.
Na semana passada o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) divulgou o perfil do eleitorado brasileiro. Nosso país atingiu em 2007 a marca de 127,4 milhões de eleitores. Não sei se deveria ou não ter ficado surpresa com a estatística que segue, o fato é que fiquei mais que surpresa, fiquei assustada. Do total de eleitores do país, 51,5 %, mais da metade, não concluiu o ensino fundamental e 6,46 %, o equivalente a 8,2 milhões de eleitores, é analfabeto.

Na manhã chuvosa de ontem, mais um dado me alarmou, li na Folha que um em cada cinco jovens entre 18 e 29 anos e que vivem na zona urbana abandonou a escola antes de completar o ensino fundamental, segundo trabalho feito pela Secretaria Geral da Presidência da República com base na Pnad 2006 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE.

Penso nisso como uma fileira de dominós, fragilmente colocados, um em frente ao outro. Se um balança, todos os outros caem, num fluxo contínuo até que a última peça vá ao chão.
Ou, para continuar com o pensamento lúdico, como num tabuleiro de xadrez. Não é permitido ao peão se movimentar de maneiras diversas, ele só pode andar casa a casa na mesma direção. O principal objetivo do jogo é proteger o Rei, quando o Rei está em xeque, é obrigação do jogador tirar o rei de xeque, qualquer outra jogada, que não resulte no fim do xeque, é considerada ilegal. Há três maneiras para sair de xeque: movendo o Rei para uma casa não ameaçada; tomando a peça que ameaça o rei ou interpondo uma peça entre o Rei e a peça atacante.

Para bom entendedor um pingo é i.

Como iremos exigir voto consciente de uma população que não tem acesso ao mínimo de educação e conhecimento? Como estas pessoas terão a educação necessária se os eleitos não dão a devida atenção ao tema depois dos belos e intermináveis discursos políticos?
Mas afinal, que vantagem há em educar a população?

Vivemos em um país que delega aos jovens a responsabilidade por salvar o Brasil, mas nossos jovens não têm tempo para isso, nem para a escola. "Um mês depois de ter recuado na decisão de realizar um corte de 80% nas verbas do Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), o governo federal ainda não repassou os recursos deste ano a nenhum dos 2.206 municípios brasileiros que são atendidos pelo programa"(Folha de S. Paulo)

Pode até ser lugar comum, mas muitas vezes o comum nos foge ao alcance.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O Zé da esquina

O Zé da esquina é adjetivo para qualquer Zé, ou um Zé qualquer, alguém que todo mundo já ouviu falar mas ninguém sequer considerou se relacionar.

Mas esse Zé, o de uma das esquinas mais movimentadas da zona sul de São Paulo não é qualquer Zé, muito menos um Zé qualquer, ele é um empresário de sucesso. O Zé teve a astúcia de perceber cedo um mercado em ascensão nas grandes metrópoles. Dentre o leque de produtos que Zé vende estão: cordialidade, simpatia, alegria, amizade, bate-papo, esperança.

O leitor pode estar pensando, “Que papo furado é este”? Explico.

O Zé não tem as pernas, mas calma, não pretendo ser sensacionalista, quando se conhece o Zé este é um detalhe que passa desapercebido. O Zé anda sobre um skate de um lado para o outro na avenida República do Líbano, e pasmem, o Zé não pede dinheiro, não oferece bala, não tenta lavar seu vidro, não apela para o já conhecido “Por favor, me ajude, eu tenho filhos para criar e não posso trabalhar”. O Zé faz amigos, ele conversa de igual para igual, não se diminui, não tem autopiedade. Ele cativa com seu carisma, faz com que pessoas abaixem o vidro de seus carros, sem medo de assalto, apenas para saber deste homem que aos olhos da maioria deveria ser tão infeliz, qual o motivo do sorriso que todos os dias insiste em lhe acompanhar.

Alguns poucos passam batido, a maioria pára ou diminui a velocidade frente ao semáforo aberto para colocar a conversa em dia. Alguns, como eu, torcem para que o semáforo esteja vermelho, para poder gozar de alguns segundos a mais a companhia deste Zé, que por forte afeição ouso chamar de amigo.

- Oi linda! Ué, cadê o namorado?

- Trabalhando Zé

- Como foi o fim de semana Zé?

- Maravilhoso

- Me diz uma coisa Zé, você ta sempre felizão aí, como você consegue estar sempre tão bem?

- O pessoal acha que eu sou coitado por ficar aqui. Pô to numa boa, vejo mulher bonita o dia inteiro, conheço e converso com gente inteligente e simpática, paquero a mulherada e ainda ganho um dinheiro.
Aquele carro ali eu comprei com o dinheiro que os amigos me dão aqui, e ainda sustento meus 5 filhos

- Porra Zé, cinco?!

- Pois é né linda, não consigo me segurar quando vejo mulher bonita, cada filho é com uma mulher. E não parei ainda não!

Abre o semáforo, como no autódromo de Interlagos todos tentam assumir a primeira posição, a fim de chegar 2 minutos antes ao seu destino.

O Zé fica lá na sua esquina, com seu skate e seu sorriso.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O crime é organizado, e as políticas de segurança pública, são?


Polícia Civil cerca e ocupa o Morro da Mangueira Cemitério clandestino e muro para proteção de bandidos já foram localizados



Rio - Cerca de 280 policiais civis fazem operação no Morro da Mangueira, Zona Norte do Rio, desde o início da manhã desta terça-feira (08/01/08). Eles cercam todas as entradas e saídas e ainda ocupam a favela com o objetivo de cumprir oito mandados de prisão e apreender armas e drogas. Entre os bandidos procurados está Francisco Paulo Testas Monteiro, o Tuchinha. Ele é acusado de atuar no tráfico de drogas da favela.
Houve intenso tiroteio por volta das 6h. O helicóptero da Polícia Civil sobrevoou a área. Quinze pessoas foram detidas até o momento e estão sendo levadas para a 17ª DP (São Cristóvão).
Durante a incursão, os policiais encontraram um local usado para queimar traficantes rivais. Havia também crânios e restos de ossos. Foi descoberta ainda uma fortaleza do tráfico no alto do morro. O muro, que tem cerca de 15 metros de largura e foi construído com malhas de ferro e concreto, servia de escudo aos criminosos. Segundo a Rádio CBN, uma tonelada de maconha, pronta para ser embalada, foi apreendida.
No meio da manhã, cerca de 10 homens atearam fogo em um ônibus da Viação Braso Lisboa, linha 472, na Rua São Luís Gonzaga, no Largo da Cancela, em São Cristóvão. Todos os passageiros foram retirados do coletivo antes da gasolina ser jogada. Ninguém ficou ferido. Bombeiros foram chamados e controlaram as chamas. Segundo a polícia, o ataque é uma reação de traficantes contra a operação da Polícia Civil no Morro da Mangueira.


Fonte: O Dia




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Em mais um episódio da interminável história da guerra do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, policiais despreparados, mal pagos, mal equipados e mal informados, subiram o Morro da Mangueira na última terça-feira para cumprir 8 mandatos de prisão.

Ao ler a notícia acima alguns questionamentos me atormentaram, e me pergunto se os jornalistas que a produziram não tiveram as mesmas dúvidas ou se simplesmente preferiram ignora-las.

- Algum dos 15 detidos estava na lista daqueles oito mandatos de prisão, ou eram peixes pequenos, como na maioria das vezes são?

- O que se fez com a “fortaleza do tráfico no alto do morro. O muro, que tem cerca de 15 metros de largura e foi construído com malhas de ferro e concreto, servia de escudo aos criminosos”. Foi tomado? Destruído? Esquecido?

- O traficante Francisco Paulo Testas Monteiro, o Tuchinha, foi encontrado? Alguma pista? Algum avanço foi alcançado com esta operação?

4º e o mais importante - Qual é o real impacto deste tipo de ação para o tráfico e os traficantes de drogas na cidade?

280 policiais foram mobilizados, o helicóptero da Polícia Civil sobrevoou a área. Será que o saldo deste tipo de ação é válido?

Não pretendo aqui menosprezar o trabalho da polícia do Rio de Janeiro, nem seus resultados. A questão é, há quanto tempo ações dispersas são realizadas e acabam com o esta com quinze pessoas detidas e uma tonelada de maconha apreendida? Até quando vamos insistir em ignorar o fato de que até hoje, se formos sinceros, saberemos que nenhum grande passo foi dado no sentido de acabar com a guerra do tráfico, pelo contrário, ela se fortalece a cada dia.

Devemos tentar abandonar a hipocrisia e admitir que para esta empresa milionária que é o tráfico de drogas, uma tonelada de maconha apreendida é um pedregulho no sapato, algo que vai gerar represálias contra a população (usada de isca para aterrorizar a opinião pública, que na realidade não se importa) mas que rapidamente será superado por uma nova remessa de cocaína que instantaneamente será vendida e enriquecerá os cofres do tráfico.

E enquanto isso acontece, segue a desorganização das políticas de segurança pública e neste momento mais duas invasões estão acontecendo na Favela do Jacarezinho e no Morro do Borel. Talvez alguns sejam presos, talvez um pouco de droga seja apreendida, talvez alguns morram, mas amanhã tudo volta ao normal, as notícias de ontem não terão continuidade e amanhã as páginas estarão cheias de “novidades”.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Diário de família


Íamos passar doze dias juntos em Gramado e Canela. Enquanto conversava sobre a viagem com um amigo de Santa Cruz do Sul, meu pai explicava:

-- Quero levar minhas filhinhas para passear.
Darci, o amigo, sugeriu:
-- Por que não irmos até Bento Gonçalves?
Após a primeira concordância de meu pai, o roteiro não parou de se estender.
-- Por que não irmos até o Chuí?
-- Já que estaremos lá, por que não irmos até Punta del Leste?

E daí para Montevidéu foi um pulo. Assim se traçou o roteiro daquele passeio que nada mais era que a vontade de uma família de permanecer o máximo de tempo junta em seu mundinho particular.

Meus pais se separaram quando eu tinha 5 anos; e a Juju, apenas alguns meses. Ela era branquinha feito nata, com os cabelos mais negros que já vi, e meu pai ainda tinha os seus. Nessa história nunca houve pai carrasco, mãe amargurada, madrasta malvada ou filhos abandonados.

O final foi feliz.

Tão inusitado e repentino quanto a definição da viagem foi a escolha do meio de transporte, que viria a se tornar nossa moradia, nosso esconderijo, aquela pequena comunidade sobre rodas que pertenceria apenas aos seus passageiros durante doze dias. Fomos de van. As duas famílias: eu, minha irmã, minha madrasta (ou, como a Juju prefere dizer, “ótimadrasta”) e meu pai; Darci, Marlene e Dudu. Nós nos encontramos com eles em Santa Cruz do Sul e de lá partimos para o passeio.

Já na primeira parada, em Gramado, percebi que precisava de meias mais grossas, gorros e luvas. Em Agudos, o máximo que usamos nos dias de mais frio é uma malha. Minha irmã tinha dez anos, mas era tão miudinha e franzina que eu não a enxergava embaixo dos casacos.
Que lindas as cidades turísticas do Sul! Com todo aquele frio, as flores de Gramado agüentavam, belas e vigorosas, paradas ali fora, observando e sendo observadas por nós, os turistas. Dentro das cafeterias tentávamos encontrar conforto em uma xícara de chocolate quente. Queimei a ponta da língua. Os pontinhos vermelhos me arderam por três dias, lembrança do chocolate quente.

Eu e meu pai sempre fizemos o estilo aventureiro. Minha madrasta, nesses momentos, faz jus à amizade que mantém com minha mãe, despejando broncas e recomendações e protegendo a Juju das nossas insanidades.

Mas aquele dia ela exagerou. À beira das escadarias que levavam ao pé da queda d’água havia um precipício. Nunca fui boa para calcular distâncias, mas pela altura dos pinheiros, que tinham suas raízes lá embaixo, e as copas ali ao nosso alcance, e pela maneira como eles se envergavam ao vento, como se o reverenciassem, podia-se fazer uma boa idéia da altura. Um teleférico se agarrava ao fio de metal. Lembrava o pêndulo do relógio de parede da casa do meu avô de tanto que balançava de um lado para o outro.

Era ali que meu pai queria nos levar. Os chumaços de cabelo que ainda se agarravam dos dois lados da cabeça dele voavam, deixando-o com cara de cientista doido. Por sorte, sua brilhante idéia foi contida pela desconfiança dos demais.

Já era tarde quando chegamos a Bento Gonçalves. Tínhamos uma mesa reservada para jantar na Casa Valduga, a mais famosa vinícola da região. Mas antes disso precisávamos de um hotel. Não seria problema, não fosse o encontro de enólogos que acontecia naquele final de semana na pequena cidade. Era julho de 2000.

Encontramos um hotel, o único com vagas disponíveis. “Será que está frio em Agudos?”, pensei. O chuveiro oferecia duas opções: frio, saindo algumas gotas d’água, ou gelado, despejando um pouco mais. Ah, também havia uma terceira opção, e meu ficou com ela: “Hoje vocês não tomam banho de jeito nenhum”.

Vestimos a quarta camada de roupa e fomos ao jantar, tão elegantes quanto sujos. “Quanto vinho deve caber dentro desses enormes tonéis?”, pensei. “Quanto tempo eu levaria para beber todas essas garrafas?”

Durante o tour pela vinícola, eu não podia deixar de pensar em meu avô, que sempre me dissera: “Filhinha, para chegar aos 80 anos bem de saúde, como eu, você tem que beber um cálice de vinho todos os dias”. É claro que ele bebia mais que um cálice. Ensinamentos como esse não podemos recusar. Seguimos à risca seu conselho.

Caldo de capelete, coelho, vinho tinto. A moça de vermelho entoava: “Cantare, oh, oh...”, enquanto lançava olhares para meu pai. Mal sabia ela como a Cida podia se enfurecer. Não atentei muito à família amiga que nos acompanhava, acho que queria que aquele momento fosse só meu.

Meu pai brincava que queria me casar com o neto do dono da vinícola. Ele me fez até tirar uma foto com o moço. Suas bochechas, ruborizadas pelo constrangimento, eram a imagem da vinícola.
Acabou o jantar. Como alguém podia comer coelho, um bicho tão bonitinho? Mas comi, e achei uma delícia.

Em uma sala ao lado, estava acontecendo uma confraria de degustadores de vinho. Meu pai, desinibido como de costume, entrou na sala reservada e fez um discurso emocionado.
Nas horas de nervosismo e emoção, ele ri feito bobo, riso nervoso. Isto acontece quando tem que nos dar uma bronca ou se sente orgulhoso das filhas. O nariz de batata fica vermelho mesmo com a pele morena, bem mais que a nossa, difícil acreditar no parentesco.
O nhec-nhec daquela cama tubular vagabunda não deixou ninguém dormir, mas não tinha importância, estávamos juntos. Na manhã seguinte eu e a Juju aprendemos a técnica de lavar o rosto sem molhar. Ponha a ponta, mas é só a pontinha mesmo, dos dedos indicadores na água, depois leve-os até o canto interno dos olhos, removendo de maneira indolor todos os resquícios da noite passada. Depois daquele hotel, qualquer coisa servia.

Rumo ao Chuí. Será que existe mesmo? Uma só estrada, absolutamente reta. Do lado direito, o banhado; do lado esquerdo, o banhado; em frente e atrás, a mesma reta sem fim que víamos há horas. A Cida não devia estar gostando nada daquilo ali. Morre de medo de água.
A reserva do Taim é um espelho d’água onde uma grande variedade de animais executa vôos rasantes, acrobacias e mergulhos. Ali, nós é que éramos os animais estranhos.
Paramos para lanchar no último posto do caminho. Ali nem tinha mais guaraná. “Acho que estou bem longe de Agudos”, pensei, com saudades da minha mãe.

Ainda em meio ao banhado vimos uma nuvem preta. Paramos a van e descemos. Eram os marrecos da Patagônia, migrando em grupo, como nós.

De repente o dia virou noite, ficou escuro como breu. A cidade não chegava. Todos dormiam lá atrás. Eu, meu pai e Darci ficamos acordados na frente. O Darci dirigia.

-- Celso, acho que a gasolina pode não dar até a cidade.

Ele apenas dividiu sua aflição conosco naquela frase carregada de sotaque gaúcho. Não havia o que fazer. Não se via uma alma viva naquela estrada, e muito menos um estabelecimento comercial ou um posto de gasolina. Conversávamos para tentar nos distrair. Uma luz. Será o Chuí? Não, apenas um caminhão, tão solitário quanto nós.

Finalmente o Chuí. Meu estômago parecia um bicho selvagem, nervoso. No restaurante do hotel, apenas uma mesa ocupada. Senti-me em uma cena daqueles filmes de terror nos quais uma família, em noite de chuva forte, só encontra um hotel abandonado para ficar.

Só tinha parrillada, disse o garçom. Vimos uma chapa fria, suja, cheia de todo tipo de carne: vaca, porco, chorizo, frango, todo o frigorífico.

Detesto carne, meu pai também. À base de uma alimentação exemplar ele mantém o corpo esbelto de que tanto se orgulha. Poucos rapazes podem exibir uma barriga tão sequinha como a daquele homem de mais de cinqüenta anos.

Na outra mesa comiam sopa. Todos os olhares estavam sobre ela. Aquela fumacinha saindo da panela nos puxava como nos desenhos do Pica-pau e de Tom e Jerry.

-- Por favor, além da parrillada, você pode nos servir aquela sopa?
-- Não, senhor. Aquele é o dono do hotel e sua família. O cozinheiro fez a sopa para eles.
-- Será que o dono do hotel não pode nos dar um pouco da sopa?
-- Vou perguntar.

Cinco minutos depois, nós nos aquecíamos com a sopa.
Corredores escuros e abandonados, tapetes velhos, cheiro de naftalina. Provavelmente éramos os únicos hóspedes. Eu pensava: “Que motivo traz alguém até aqui?” Senti vontade de fingir não ter quinze anos, voltar à infância e correr para o quarto dos meus pais, como fazia quando eles ainda eram casados.

Recordei o sobrado da Rua General Góis Monteiro, no bairro da Vila Anglo, em São Paulo. Eu devia ter uns quatro anos. Levantava da cama segurando pela ponta da fronha o travesseiro que se arrastava, varrendo o longo corredor. No meio do caminho havia uma escadaria que, de madrugada, mais se parecia com a boca de um monstro querendo me engolir. Naquela hora eu corria. Já no quarto dos meus pais, pisava com força em um taco estrategicamente solto, que produzia um estalo, acordando a todos. Meus pais, já acostumados, abriam espaço e eu me arrastava como uma lagartixa até seus braços, por debaixo dos cobertores.

Resolvi deixar de prestar atenção nos barulhos horrendos que as paredes, portas e corredores daquele hotel faziam durante a noite. Adormeci. Sonhei que estava na minha cama em Agudos.
Quando acordei, me senti deslocada. As ruas do Chuí, na divisa do Brasil com o Uruguai, se pareciam com um misto de ferro-velho, desmanche, museu e centro de muamba. Como esses carros podiam andar? Cordas seguravam as portas, plásticos no lugar dos vidros, motores à mostra por falta da lataria.

Paramos para tirar uma foto sob a placa que dizia: Bienvenidos a la Republica del Uruguay. Logo ali ao lado tentamos fazer uma ligação para minha mãe. A telefonista dizia: “Para hacer esta llamada... Gracias”. Voltando um passo à esquerda ouvíamos: “Para completar esta ligação... Obrigada”.

Seguimos rumo a Punta del Leste. Eu nunca havia saído antes do Brasil. O casal que nos acompanhava ou discutia ou se ignorava.

-- Papai, Cidinha, a vaca tá usando roupa!

Minha irmã era muito espirituosa para a idade que tinha naquela época. De fato, as vacas tinham mantas sobre as costas, que as protegiam do frio. Bem que eu aceitaria uma...
Cinco anos de diferença entre duas irmãs, naquela fase da vida, podia ser muito.

-- Papai, Cidinha, a Natália tá pensando naquele namorado dela!

Que vontade de socar aquela pirralha linguaruda. Minha família era incomum, sabíamos disso. Onde mais uma ex-mulher, o marido e a nova esposa são realmente amigos? Mérito dos três.
Minha mãe é daquelas que, enquanto viver, vai nos abrigar sob as asas. Nos olhos claros se pode ver a força, escondida pelos gestos delicados e pelo hábito de servir e agradar a todos.
Um café por três dólares. Chegamos a Punta del Leste. Decidimos visitar as praias e o píer. Mesmo com as novas meias que havia comprado, o frio parecia cortar meus sapatos e invadir meu corpo pelos pés. Em Agudos não tinha isso. Os muitos pêlos espalhados pelo corpo do meu pai, que tanto atrapalhavam na praia, na hora de espalhar o protetor solar, deviam estar sendo úteis naquele momento. No píer, o vento mais parecia uma navalha. A Juju já não queria mais saber de tirar fotos ou alimentar os leões-marinhos. Não tínhamos casacos suficientes. Eu e a Cida fazíamos revezamento.

Almoçamos em um restaurante à beira-mar. O chef já havia trabalhado no Rio de Janeiro, todos amavam o Brasil. Pedimos frutos do mar na chapa. Quisera eu não ter visto o polvo antes de ser cortado. O chef mostrava com orgulho o animal, levantando-o pela cabeça. Aquilo me soava como uma provocação. Comi o polvo.

Que hotel! Que noite! Visitamos o Conrad, famoso hotel cinco-estrelas conhecido por seu cassino. Eu nunca tinha visto tantas limusines juntas.

Ao descermos da van para entrar no Conrad, senti uma aflição tomar conta de mim. A Juju cambaleava com o vento, como se a qualquer momento fosse ser levada como uma pipa, igual àquelas que fazíamos em Agudos, quando crianças. Duas varetas (quanto mais finas melhor), linha, cola e papel colorido. Seguramos a Juju com força. Eu não saberia viver sem minha irmã. O apito do vento balançava também a van.

Elegância, ganância, dinheiro e poder. Como eu estava longe de casa! As luzes do cassino me chamavam. Desejei ter dezoito anos. Mas o segurança de dois metros, que estava à porta do cassino, pediu para ver meus documentos. A noite foi ótima. Que hotel! Pela primeira vez não senti frio.

Enfim, Montevidéu. Darci, empolgado, após desligar o celular disse:

-- Celsinho, conversei com um amigo que nos indicou um hotelzinho ótimo por 85 dólares, na avenida mais bonita da cidade.

Fomos até lá. Mas pensamos que alguma coisa deve estar errada. Sobre cada travesseiro do quarto, havia trufa que era reposta todas as noites. A mesa do café-da-manhã era um banquete. A Juju não gostou de nada, deixando meu pai irritadíssimo. Suas mãos grandes e sempre quentes gesticulavam tentando convencê-la de que algo naquele quilômetro de mesa teria que agradá-la.

Saímos para ir ao shopping. Comprei um sobretudo, que tenho até hoje. Lá deparamos com um monumento alusivo à Copa de 1950, quando o Uruguai venceu do Brasil na final.
No jantar a Juju e o filho do outro casal quiseram ficar no carro. Fui incumbida de pedir ao guardador de carros do restaurante que olhasse os dois.

-- Por favor, mirar os chicos!
-- Perdón?
-- Mirar! Mirar! – Apontei para meus próprios olhos e fiz um gesto, indicando uma baixa estatura, e a van que estava logo ali.

O homem ria. Acho que pensava que eu tinha algum problema mental. Mas logo chegou um brasileiro para me prestar ajuda. Que alívio! Pensei então que precisava aprender um pouco de espanhol.

Nas ruas de Montevidéu, uma surpresa: onde não havia semáforo, bastava tocar o pé na rua e todos os carros paravam para dar passagem.
Paramos para comer no McDonald´s. Ali seria fácil:

-- Por favor, o número um.

Mas a Juju queria sem picles; meu pai, com frango; e como se não bastasse a confusão, a atendente queria que escolhêssemos la salsa. Mais um desafio para nós.

No nosso último dia em Montevidéu, vimos na avenida principal o pôr do sol mais lindo da minha vida. Até hoje o guardo intacto na memória e na foto presa ao mural sobre a cama. Após o passeio voltamos ao hotel para fechar a conta. Alguma coisa realmente estava errada.

-- São 1.785 dólares.
-- Como? Vocês disseram que seria 85!
-- Por persona, señor.

A Juju disse:

-- Papai, a gente sifu!

Mas valeu a pena. Nessa viagem, tive doze dias para pensar e compartilhar experiências. Meus olhos fixos à janela da van observavam a paisagem que passava de modo vertiginoso. Aquela e tantas outras viagens que fizemos, e ainda viríamos a fazer, eram mais que passeios.
Nos passeios, vamos e voltamos os mesmos. Trazemos apenas fotos e lembranças. Mas naquela viagem ao sul meu pai nos transmitiu valores e solidificou nosso caráter. Hoje ele tem 60 anos; eu, 22; e a Juju, 17. As relações entre nós se mantêm belas e inabaláveis.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Sobre a vida e a morte


Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma (Lavoisier).


A virada do ano é sempre época de reflexão, promessas de mudanças, pedidos. Como não poderia deixar de ser, nesta virada de ano pensei e repensei diversas coisas, mas, em despeito do clima de festa a reflexão que me prendeu, a ponto de se tornar o mote do primeiro texto deste blogue, foi sobre a vida e a morte, ou, para ser mais honesta, sobre a morte e a vida.


Nos últimos meses de 2007 presenciei a proximidade da morte. Acompanhei com uma confusão de sentimentos inexplicáveis os últimos tragos de ar dados por meu avô. O homem que aos 78 anos economizava cada centavo, desobedecia a ordens e insistia em não se curvar a cada doença que lhe acometia, agora se curvava a algo mais forte, não precisava mais economizar. Sua expressão demonstrava que clamava para que aquele fosse o último suspiro.


O intervalo entre cada respiração ficava cada vez maior, só me restava silêncio, nenhuma palavra serve neste momento. Na mesma cadência dos últimos três suspiros, falei baixo três pai nossos, como que em reflexo.
Depois disso apenas o silêncio, uma mistura de vazio, paz e a consciência do fim. Sentimos que sorrateira ela adentrou aquele quarto e o levou.

Pode parecer lugar comum, mas é incrivelmente doloroso quando percebemos a fragilidade da vida, quando a “ordem natural das coisas” é quebrada.
No almoço de páscoa ela sentiu uma dor no estômago, fato comum, Oito meses depois, no dia 31 de dezembro recebo a notícia, com 50 anos minha madrinha se foi.
Não considero uma tragédia, ela viveu, amou, bebeu, transou, chorou, viajou, teve tempo para realizações, mas a sensação de que não perdeu a vida, e sim que esta lhe foi tirada antecipadamente é inevitável.


Tragédia aconteceu com Thomas que aos 20 anos teve sua juventude tirada por um ato brutal, vindo não de um desejo superior, mas das mãos de um homem.

Ainda assim, sofri a morte da minha tia.


Pensei no tempo que gasto com coisas banais, acreditando que o relógio anda em meu favor, pensei nas coisas que deixo para amanhã, com a certeza de que ainda estarei aqui amanhã, pensei nos planos que deixo para depois, sem considerar que não tenho controle algum sobre o depois.


Neste momento pensei em João Pedro, uma vidinha nova. Nasceu três semanas antes do esperado, tinha pressa. Quis ver 2008 começar entre nós, do lado de fora, se cansou do seu mundinho solitário. Não veio preencher espaços que ficaram vazios, mas é a continuidade.


Na onda das reflexões insanas que me acometiam, cheguei até às considerações teológicas, religiosas, existenciais. De onde viemos, para onde vamos. Por que nos preocupamos mais com a segunda consideração que com a primeira? Mas logo abandonei tais pensamentos que apenas nos levam em uma espiral sem fim.

Aí entra Lavoisier, sem querer banalizar ou simplificar seu raciocínio, tive a audácia de parafraseá-lo. “Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”, acredito que o mesmo seja com a vida, portanto não perdi pessoas, nem novas vidas foram criadas, algo se transformou, algo que transcende esta carcaça que carregamos ao longo de nossos dias, algo que não ouso tentar dar nome ou forma, mas que livre que concepções ou crenças sinto.


Fico com a última frase que minha tia me deixou como lição para a vida, "Aproveite bastante"