quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Diário de família


Íamos passar doze dias juntos em Gramado e Canela. Enquanto conversava sobre a viagem com um amigo de Santa Cruz do Sul, meu pai explicava:

-- Quero levar minhas filhinhas para passear.
Darci, o amigo, sugeriu:
-- Por que não irmos até Bento Gonçalves?
Após a primeira concordância de meu pai, o roteiro não parou de se estender.
-- Por que não irmos até o Chuí?
-- Já que estaremos lá, por que não irmos até Punta del Leste?

E daí para Montevidéu foi um pulo. Assim se traçou o roteiro daquele passeio que nada mais era que a vontade de uma família de permanecer o máximo de tempo junta em seu mundinho particular.

Meus pais se separaram quando eu tinha 5 anos; e a Juju, apenas alguns meses. Ela era branquinha feito nata, com os cabelos mais negros que já vi, e meu pai ainda tinha os seus. Nessa história nunca houve pai carrasco, mãe amargurada, madrasta malvada ou filhos abandonados.

O final foi feliz.

Tão inusitado e repentino quanto a definição da viagem foi a escolha do meio de transporte, que viria a se tornar nossa moradia, nosso esconderijo, aquela pequena comunidade sobre rodas que pertenceria apenas aos seus passageiros durante doze dias. Fomos de van. As duas famílias: eu, minha irmã, minha madrasta (ou, como a Juju prefere dizer, “ótimadrasta”) e meu pai; Darci, Marlene e Dudu. Nós nos encontramos com eles em Santa Cruz do Sul e de lá partimos para o passeio.

Já na primeira parada, em Gramado, percebi que precisava de meias mais grossas, gorros e luvas. Em Agudos, o máximo que usamos nos dias de mais frio é uma malha. Minha irmã tinha dez anos, mas era tão miudinha e franzina que eu não a enxergava embaixo dos casacos.
Que lindas as cidades turísticas do Sul! Com todo aquele frio, as flores de Gramado agüentavam, belas e vigorosas, paradas ali fora, observando e sendo observadas por nós, os turistas. Dentro das cafeterias tentávamos encontrar conforto em uma xícara de chocolate quente. Queimei a ponta da língua. Os pontinhos vermelhos me arderam por três dias, lembrança do chocolate quente.

Eu e meu pai sempre fizemos o estilo aventureiro. Minha madrasta, nesses momentos, faz jus à amizade que mantém com minha mãe, despejando broncas e recomendações e protegendo a Juju das nossas insanidades.

Mas aquele dia ela exagerou. À beira das escadarias que levavam ao pé da queda d’água havia um precipício. Nunca fui boa para calcular distâncias, mas pela altura dos pinheiros, que tinham suas raízes lá embaixo, e as copas ali ao nosso alcance, e pela maneira como eles se envergavam ao vento, como se o reverenciassem, podia-se fazer uma boa idéia da altura. Um teleférico se agarrava ao fio de metal. Lembrava o pêndulo do relógio de parede da casa do meu avô de tanto que balançava de um lado para o outro.

Era ali que meu pai queria nos levar. Os chumaços de cabelo que ainda se agarravam dos dois lados da cabeça dele voavam, deixando-o com cara de cientista doido. Por sorte, sua brilhante idéia foi contida pela desconfiança dos demais.

Já era tarde quando chegamos a Bento Gonçalves. Tínhamos uma mesa reservada para jantar na Casa Valduga, a mais famosa vinícola da região. Mas antes disso precisávamos de um hotel. Não seria problema, não fosse o encontro de enólogos que acontecia naquele final de semana na pequena cidade. Era julho de 2000.

Encontramos um hotel, o único com vagas disponíveis. “Será que está frio em Agudos?”, pensei. O chuveiro oferecia duas opções: frio, saindo algumas gotas d’água, ou gelado, despejando um pouco mais. Ah, também havia uma terceira opção, e meu ficou com ela: “Hoje vocês não tomam banho de jeito nenhum”.

Vestimos a quarta camada de roupa e fomos ao jantar, tão elegantes quanto sujos. “Quanto vinho deve caber dentro desses enormes tonéis?”, pensei. “Quanto tempo eu levaria para beber todas essas garrafas?”

Durante o tour pela vinícola, eu não podia deixar de pensar em meu avô, que sempre me dissera: “Filhinha, para chegar aos 80 anos bem de saúde, como eu, você tem que beber um cálice de vinho todos os dias”. É claro que ele bebia mais que um cálice. Ensinamentos como esse não podemos recusar. Seguimos à risca seu conselho.

Caldo de capelete, coelho, vinho tinto. A moça de vermelho entoava: “Cantare, oh, oh...”, enquanto lançava olhares para meu pai. Mal sabia ela como a Cida podia se enfurecer. Não atentei muito à família amiga que nos acompanhava, acho que queria que aquele momento fosse só meu.

Meu pai brincava que queria me casar com o neto do dono da vinícola. Ele me fez até tirar uma foto com o moço. Suas bochechas, ruborizadas pelo constrangimento, eram a imagem da vinícola.
Acabou o jantar. Como alguém podia comer coelho, um bicho tão bonitinho? Mas comi, e achei uma delícia.

Em uma sala ao lado, estava acontecendo uma confraria de degustadores de vinho. Meu pai, desinibido como de costume, entrou na sala reservada e fez um discurso emocionado.
Nas horas de nervosismo e emoção, ele ri feito bobo, riso nervoso. Isto acontece quando tem que nos dar uma bronca ou se sente orgulhoso das filhas. O nariz de batata fica vermelho mesmo com a pele morena, bem mais que a nossa, difícil acreditar no parentesco.
O nhec-nhec daquela cama tubular vagabunda não deixou ninguém dormir, mas não tinha importância, estávamos juntos. Na manhã seguinte eu e a Juju aprendemos a técnica de lavar o rosto sem molhar. Ponha a ponta, mas é só a pontinha mesmo, dos dedos indicadores na água, depois leve-os até o canto interno dos olhos, removendo de maneira indolor todos os resquícios da noite passada. Depois daquele hotel, qualquer coisa servia.

Rumo ao Chuí. Será que existe mesmo? Uma só estrada, absolutamente reta. Do lado direito, o banhado; do lado esquerdo, o banhado; em frente e atrás, a mesma reta sem fim que víamos há horas. A Cida não devia estar gostando nada daquilo ali. Morre de medo de água.
A reserva do Taim é um espelho d’água onde uma grande variedade de animais executa vôos rasantes, acrobacias e mergulhos. Ali, nós é que éramos os animais estranhos.
Paramos para lanchar no último posto do caminho. Ali nem tinha mais guaraná. “Acho que estou bem longe de Agudos”, pensei, com saudades da minha mãe.

Ainda em meio ao banhado vimos uma nuvem preta. Paramos a van e descemos. Eram os marrecos da Patagônia, migrando em grupo, como nós.

De repente o dia virou noite, ficou escuro como breu. A cidade não chegava. Todos dormiam lá atrás. Eu, meu pai e Darci ficamos acordados na frente. O Darci dirigia.

-- Celso, acho que a gasolina pode não dar até a cidade.

Ele apenas dividiu sua aflição conosco naquela frase carregada de sotaque gaúcho. Não havia o que fazer. Não se via uma alma viva naquela estrada, e muito menos um estabelecimento comercial ou um posto de gasolina. Conversávamos para tentar nos distrair. Uma luz. Será o Chuí? Não, apenas um caminhão, tão solitário quanto nós.

Finalmente o Chuí. Meu estômago parecia um bicho selvagem, nervoso. No restaurante do hotel, apenas uma mesa ocupada. Senti-me em uma cena daqueles filmes de terror nos quais uma família, em noite de chuva forte, só encontra um hotel abandonado para ficar.

Só tinha parrillada, disse o garçom. Vimos uma chapa fria, suja, cheia de todo tipo de carne: vaca, porco, chorizo, frango, todo o frigorífico.

Detesto carne, meu pai também. À base de uma alimentação exemplar ele mantém o corpo esbelto de que tanto se orgulha. Poucos rapazes podem exibir uma barriga tão sequinha como a daquele homem de mais de cinqüenta anos.

Na outra mesa comiam sopa. Todos os olhares estavam sobre ela. Aquela fumacinha saindo da panela nos puxava como nos desenhos do Pica-pau e de Tom e Jerry.

-- Por favor, além da parrillada, você pode nos servir aquela sopa?
-- Não, senhor. Aquele é o dono do hotel e sua família. O cozinheiro fez a sopa para eles.
-- Será que o dono do hotel não pode nos dar um pouco da sopa?
-- Vou perguntar.

Cinco minutos depois, nós nos aquecíamos com a sopa.
Corredores escuros e abandonados, tapetes velhos, cheiro de naftalina. Provavelmente éramos os únicos hóspedes. Eu pensava: “Que motivo traz alguém até aqui?” Senti vontade de fingir não ter quinze anos, voltar à infância e correr para o quarto dos meus pais, como fazia quando eles ainda eram casados.

Recordei o sobrado da Rua General Góis Monteiro, no bairro da Vila Anglo, em São Paulo. Eu devia ter uns quatro anos. Levantava da cama segurando pela ponta da fronha o travesseiro que se arrastava, varrendo o longo corredor. No meio do caminho havia uma escadaria que, de madrugada, mais se parecia com a boca de um monstro querendo me engolir. Naquela hora eu corria. Já no quarto dos meus pais, pisava com força em um taco estrategicamente solto, que produzia um estalo, acordando a todos. Meus pais, já acostumados, abriam espaço e eu me arrastava como uma lagartixa até seus braços, por debaixo dos cobertores.

Resolvi deixar de prestar atenção nos barulhos horrendos que as paredes, portas e corredores daquele hotel faziam durante a noite. Adormeci. Sonhei que estava na minha cama em Agudos.
Quando acordei, me senti deslocada. As ruas do Chuí, na divisa do Brasil com o Uruguai, se pareciam com um misto de ferro-velho, desmanche, museu e centro de muamba. Como esses carros podiam andar? Cordas seguravam as portas, plásticos no lugar dos vidros, motores à mostra por falta da lataria.

Paramos para tirar uma foto sob a placa que dizia: Bienvenidos a la Republica del Uruguay. Logo ali ao lado tentamos fazer uma ligação para minha mãe. A telefonista dizia: “Para hacer esta llamada... Gracias”. Voltando um passo à esquerda ouvíamos: “Para completar esta ligação... Obrigada”.

Seguimos rumo a Punta del Leste. Eu nunca havia saído antes do Brasil. O casal que nos acompanhava ou discutia ou se ignorava.

-- Papai, Cidinha, a vaca tá usando roupa!

Minha irmã era muito espirituosa para a idade que tinha naquela época. De fato, as vacas tinham mantas sobre as costas, que as protegiam do frio. Bem que eu aceitaria uma...
Cinco anos de diferença entre duas irmãs, naquela fase da vida, podia ser muito.

-- Papai, Cidinha, a Natália tá pensando naquele namorado dela!

Que vontade de socar aquela pirralha linguaruda. Minha família era incomum, sabíamos disso. Onde mais uma ex-mulher, o marido e a nova esposa são realmente amigos? Mérito dos três.
Minha mãe é daquelas que, enquanto viver, vai nos abrigar sob as asas. Nos olhos claros se pode ver a força, escondida pelos gestos delicados e pelo hábito de servir e agradar a todos.
Um café por três dólares. Chegamos a Punta del Leste. Decidimos visitar as praias e o píer. Mesmo com as novas meias que havia comprado, o frio parecia cortar meus sapatos e invadir meu corpo pelos pés. Em Agudos não tinha isso. Os muitos pêlos espalhados pelo corpo do meu pai, que tanto atrapalhavam na praia, na hora de espalhar o protetor solar, deviam estar sendo úteis naquele momento. No píer, o vento mais parecia uma navalha. A Juju já não queria mais saber de tirar fotos ou alimentar os leões-marinhos. Não tínhamos casacos suficientes. Eu e a Cida fazíamos revezamento.

Almoçamos em um restaurante à beira-mar. O chef já havia trabalhado no Rio de Janeiro, todos amavam o Brasil. Pedimos frutos do mar na chapa. Quisera eu não ter visto o polvo antes de ser cortado. O chef mostrava com orgulho o animal, levantando-o pela cabeça. Aquilo me soava como uma provocação. Comi o polvo.

Que hotel! Que noite! Visitamos o Conrad, famoso hotel cinco-estrelas conhecido por seu cassino. Eu nunca tinha visto tantas limusines juntas.

Ao descermos da van para entrar no Conrad, senti uma aflição tomar conta de mim. A Juju cambaleava com o vento, como se a qualquer momento fosse ser levada como uma pipa, igual àquelas que fazíamos em Agudos, quando crianças. Duas varetas (quanto mais finas melhor), linha, cola e papel colorido. Seguramos a Juju com força. Eu não saberia viver sem minha irmã. O apito do vento balançava também a van.

Elegância, ganância, dinheiro e poder. Como eu estava longe de casa! As luzes do cassino me chamavam. Desejei ter dezoito anos. Mas o segurança de dois metros, que estava à porta do cassino, pediu para ver meus documentos. A noite foi ótima. Que hotel! Pela primeira vez não senti frio.

Enfim, Montevidéu. Darci, empolgado, após desligar o celular disse:

-- Celsinho, conversei com um amigo que nos indicou um hotelzinho ótimo por 85 dólares, na avenida mais bonita da cidade.

Fomos até lá. Mas pensamos que alguma coisa deve estar errada. Sobre cada travesseiro do quarto, havia trufa que era reposta todas as noites. A mesa do café-da-manhã era um banquete. A Juju não gostou de nada, deixando meu pai irritadíssimo. Suas mãos grandes e sempre quentes gesticulavam tentando convencê-la de que algo naquele quilômetro de mesa teria que agradá-la.

Saímos para ir ao shopping. Comprei um sobretudo, que tenho até hoje. Lá deparamos com um monumento alusivo à Copa de 1950, quando o Uruguai venceu do Brasil na final.
No jantar a Juju e o filho do outro casal quiseram ficar no carro. Fui incumbida de pedir ao guardador de carros do restaurante que olhasse os dois.

-- Por favor, mirar os chicos!
-- Perdón?
-- Mirar! Mirar! – Apontei para meus próprios olhos e fiz um gesto, indicando uma baixa estatura, e a van que estava logo ali.

O homem ria. Acho que pensava que eu tinha algum problema mental. Mas logo chegou um brasileiro para me prestar ajuda. Que alívio! Pensei então que precisava aprender um pouco de espanhol.

Nas ruas de Montevidéu, uma surpresa: onde não havia semáforo, bastava tocar o pé na rua e todos os carros paravam para dar passagem.
Paramos para comer no McDonald´s. Ali seria fácil:

-- Por favor, o número um.

Mas a Juju queria sem picles; meu pai, com frango; e como se não bastasse a confusão, a atendente queria que escolhêssemos la salsa. Mais um desafio para nós.

No nosso último dia em Montevidéu, vimos na avenida principal o pôr do sol mais lindo da minha vida. Até hoje o guardo intacto na memória e na foto presa ao mural sobre a cama. Após o passeio voltamos ao hotel para fechar a conta. Alguma coisa realmente estava errada.

-- São 1.785 dólares.
-- Como? Vocês disseram que seria 85!
-- Por persona, señor.

A Juju disse:

-- Papai, a gente sifu!

Mas valeu a pena. Nessa viagem, tive doze dias para pensar e compartilhar experiências. Meus olhos fixos à janela da van observavam a paisagem que passava de modo vertiginoso. Aquela e tantas outras viagens que fizemos, e ainda viríamos a fazer, eram mais que passeios.
Nos passeios, vamos e voltamos os mesmos. Trazemos apenas fotos e lembranças. Mas naquela viagem ao sul meu pai nos transmitiu valores e solidificou nosso caráter. Hoje ele tem 60 anos; eu, 22; e a Juju, 17. As relações entre nós se mantêm belas e inabaláveis.

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